As mulheres que já amei pra sempre IV – A que tinha os sapatos mais bonitos

A história começa ridícula e termina, se não trágica ou sem um fim propriamente dito, final, termina de uma forma que leitores-que-gostam-dos-felizes podem parar de ler por aqui. Não é incomum, e Marc Webb já a contara pouco antes de eu deitar o dedo na caneta – this is a story of boy meets girl etc – e é plágio de tantas outras que sinto vergonha. Não da história; mas de repetir o repetido pros cansados de ler sempre as mesmas linhas desses romeus e julietas mal orquestrados pelos corações de homens mal escritos. De ritmo irregular e malcriado, levo pela memória para tentar fazer com que as palavras tropecem do peito pra fora. Se faço o certo e abro o verbo e racionalizo o que conto, é porque tento dar às palavras do coração, que é mau escritor, uma forma que só o cérebro pode entender; perturbo o sono dos músculos cardíacos e faço ventrículos terem pesadelos apressados. Mas preciso correr o risco de ser entendido por aqueles que não deveriam ler minha história – ou qualquer outra – (os insensatos, os racionalistas, os que têm a cabeça no lugar certo. Leitores-espírito-de-porco. Que traem o peito e a alma.) para fazer sentido àqueles que só querem isto: vim, vi, vivi. Pronto. Quem precisa de fatos?

Ela usava sapatos Schutz. O que obviamente para mim não fazia a menor diferença, mas para ela era tudo. ‘Um dia você ainda me escreve sobre os sapatos Schutz laranja de salto altíssimo que usei, não escreve?’ Ela me conhecia. Claro que sim.

Aquela noite em que ela usava tais sapatos não era demais. Era seu aniversário, sim, mas não um redondo ou especial ou importante. Nem de angústia era noite, nem de tensão, romance. Gola de camisa vermelha arrumada para mim. Saia comprida azul e camisa colada ao corpo para ela (ela ainda sabia que eu gostava dela de saia?). Blazer, formal, blasé. Não era casual o encontro. Mas não dizia muito.

Mesma intimidade, mesmo toque. Mesma boca que me sussurrava oi ao ouvido enquanto me abraçava. Mesmo perfume. Mesmos amigos. Ela não mudava.

Ainda assim, era uma mulher muito diferente.

Mas eu fazia as vezes quixotescas e falava sobre gigantes com moinhos de vento:

– Lembrei de você em Nova York. Nova York é a sua cara. Vários sapatos desse estilo.

E o que se passava em minha cabeça era que dizia sinto sua falta mais que tudo. (- Diga bom-dia para a noite, que já quase é minha hora. Ou me abraça forte e não me deixa ir. Não há muito mais que esse momento em que meus pés querem criar raízes no seu apartamento. Braços, pescoço, barriga, todo meu corpo é extensão do seu castelo. Essa noite; uma dança ruim de uma música que desconheço, mas que você sabe de cor; duas ou três lembranças do que já fomos. Isso bastaria para mim – comida, água, desejo. Não sou um homem de ambições maiores.)

– É, eu também sabia que você ia gostar de Nova York.

(- Eu sei. Por isso que não. Porque eu preciso de homem de ambições grandiosas. Não de meninos com ridícula obsessão de amor.)

– Vou ali pegar um 18 anos. Quer Chandon?

– (risada) Você me conhece…

Conhecia e não conhecia já àquela altura. Ela era amalgamática simbiótica antitetânica – da biologia que desconheço, ela era razão e circunstância do cientista louco, a vacina que eu procurara por anos a fio de pesquisa alquimística, hiperbólica e proparoxítona. A cada vez que me aproximava de uma resposta que sanasse o maldito vírus, a cura inexorável do vírus com que eu mesmo me infectara para a experiência, ela, virótica, mutava; calçava outros sapatos – Louis Vuitton, Louboutin, Manolo Blahnik – e voilá, eis a mulher, mutatis mutandis, a essência e o essencial, biologicamente a mulher, monalisática, enigmática, síntese da minha dúvida de amá-la para sempre e de a nunca mais querer.

Jogou o cabelo para o lado com um meneio singular do pescoço. Acenei com um sorriso.

– Claro. Te conheço como ninguém.

Ela era o Mistério; dizia sempre mais de mim que dela mesma. Do que revelava, só seus sapatos Schutz de cor laranja altíssimos, salto agulha, eram os culpados pela minha covardia.

A noite decorreu sem mais demora. Os leitores, mal acostumados, já não tardam em me perguntar o que era, o que rolou. “Vocês se amam ainda? Vão ficar juntos? E aquela noite?”

Aquela noite é minha memória e não a divido. Sinto muito; há segredos que são mais bonitos quando em mistério. Mesmo para mim há uma tênue névoa que me embota a memória e impede objetividade: tudo é nuvem e tolice quando, em idílios, sofismamos. Não importam os fatos.

Para que não fiquem os curiosos a insatisfazer-se em torturas de imaginar o que foi, a pensar no pião que gira ao fim de um filme sem fim, sem final propriamente dito, respondo que sim, é o que o leitor paciente imagina: nós nos amamos ainda e para sempre. Não seremos desconhecidos nos mapas dos desejos do outro, nem estranhos, nem inconvenientes, nunca mais. Ela é meu detergente e minha mácula, doce e sal juntos como ovo frito com banana, a vontade de pra sempre e a finitude, sem oximoro: só o inadiável desejo de querer o que já foi, o que não será mais.

Ao final, porém, de tudo o que ela já me disse – e eu copio, por absoluta incapacidade de dizer de outro jeito –, resta o que já ouvi triste, quando ainda não entendia:

– É verdade. Eu te amo. Mas às vezes amor não basta. Você não vê?

Não via. Olhava para baixo. Ela estava descalça quando me atirou na cara o que me era cegueira branca. Foi quando ali, prostrado, criatura miserável, cresci. Virei homem feito. Entendi Fernando Pessoa e tudo.

E o que me era indiferente virou claro, o que me era estúpido, sagrado, o que me era vivo, narcoléptico; dormem em sono pesado o coração e a alma plúmbea.

Para que o leitor não tenha sono desconfortável, digo-lhe que é a vida. Que tudo bem, a gente aprende. E que, afinal, não poderia haver mais bonita história de amor.

Se sangra o peito, leitor, se lhe rangem os ossos, então é a conclusão que adio há quatro parágrafos – por absoluta incompreensão e plena certeza de que fim não há –: da entrega e da verdade, nascem as mais bonitas cicatrizes.

Cicatrizes laranja de salto altíssimo. O chique no úrtimo no brechó do coração.

 

Published in: on 19 de novembro de 2012 at 21:27  Comments (2)  

As mulheres que já amei pra sempre II – A que me fez um verso bonito mas não era poetisa

, que infelicidade a gente toma de qualquer jeito, a pílulas ou conta-gotas. Tem barro demais embaixo dos sapatos, e isso já dá até pra contar uma história, não bonita nem triste nem nada sobre como aquilo tudo fora parar ali. Diga-se não muito. Que é pro leitor não cansar e não perder o foco da graça solta da coisa toda. Mas diga-se uma anedota engraçadinha pra bastar no contrapeso da balança.

Antes, era daquelas pra quem olhava e já sabia antecipar-lhe o gosto da boca. Os sabores diziam tudo ou quase sobre seus desejos: antidesejos. Realizava-os molemente, malemolente, a seu tempo.

Depois, era daquelas que descobria aos poucos, e a quem cobria de novo com um véu de solenidades para mascarar-lhe os perfumes. E redescobri-los uma vez mais. Era um jogo que ambos jogavam com gosto e com riso. E com pranteares, mais tarde. Como ele já sabia, mas não revelava. Como ele já sabia.

Ele sabia de tudo, eu poderia dizer, como numa peça sem público, um verdadeiro fracasso, que se ensaia muito apenas – apenas – para o êxtase e as alegrias do próprio ator. Os passos e os erros e os acertos e como aquela história toda se juntaria a metáforas de barros e sapatos ele sabia. Sabia, porque traçara roteiros semelhantes. O final era sempre antiapoteótico, dir-se-ia um pastiche. Um tango. Um romance do Puig.

Boquitas pintadas – era o que pensava – e lá estava ela de novo, já arrumada. Foi quando (ela) poemou-se-lhe a fazer versos carinhosos assim do nada.


rezo aos anjos

e a um deus piedoso

que o barco atravesse o rio

que o rio corra ao mar

que o mar se atulhe e vaze

em ondas, sortes, azares

como ordenam o curso dos desígnios


e a vida


Ele acariciou-a com os lábios molhados e pediu mais um verso. Ela então disse-lhe


é a vida.


Tocou o telefone e ele deixou tocar. Não era nada, ele dizia. A vida é meu momento é meu momento é meu momento aqui. Negou os tais desígnios, mas soube-se inapelavelmente preso a eles. Essa história de destino que esperasse. Os barros para o sapato, as metáforas, ao diabo com as metáforas – elas que esperassem.

Era ali, só, feliz. Sem saber. Que felicidade não se sabe nunca. E por isso, talvez, fosse.

E era questão de tempo até que, por fim ou finalidade,

Published in: on 5 de junho de 2011 at 22:34  Comments (11)  

As mulheres que já amei pra sempre I – A que gostava da Nico mas não do Lou

 

 

Here she comes, you better watch your step…


“É. Christa Päffgen. Não digo o contrário.”

“Cara, tou me metendo de birra, o papo não é meu e tá um barulho infernal aqui dentro, mas você não pode estar séria.”

Ela estava. Tinha sardas na pele branca. Loira de fios revoltosos. Ela me lembrava uma tarde lusco-fusco num parque de diversões. Com sorvete. Refletia no sorriso o que era, certo-como-dois-e-dois, os olhos mais bonitos. Muito rímel e lápis. Pretos. Atrás da pupila, uma retina branca branca, de realçar. Franja. E os olhos pretos de novo.

Foi o caminho que percorri até a boca.

“Esquece a banana do Warhol. Esquece tudo. Eles não existiriam sem Femme Fatale.”

Eu não discordava nem discordava. Balançava a cabeça e ria. Femme Fatale.

 

 

She’s going to break your heart in two, it’s true…

 

 

“Era uma profecia…”

Ela me disse isso depois de uma noite dessas que me pareciam comuns. Apertou um cigarro. Olhos pretos fixos no teto. Ventilador que girava sem função.

“Que profec–“

“Shh! Era uma profecia.”

Acho que bateu. Eu (ela) me interrompia pra se deixar levar. Eu a ouvia. Sempre fui de ouvir. A ela principalmente.

Pedi desculpa. Devia ser, eu disse sem nenhuma implicância e com algum interesse. Deve ser.

“Você duvida?”

“Não. Não duvido.”

“Ahn.” Tragou fundo. Soltou o peito lentamente, deixando-se arfar com a saída da fumaça e a entrada de ar. Era bonita.

Pegou de um caderno. “Você é o número 37. Três é o número terreno pros hindus. Quatro é o número sagrado. Sete é a soma dos dois. Você é terra.”

Isso faz de você divina. Era o que eu queria ter dito. Mas talvez não fizesse diferença.

 

 

It’s not hard to realize, just look into her false colored eyes…

 

 

“Mas não é do nada. É que não é mais.”

Eu olhava. Eram os mesmos olhos, não eram mais, eram de novo. “Só me diz que seu nome é Alice, por favor. Alice Ayres.”

Tomou meu rosto entre as mãos. Não sei se eram delas ou minhas, as lágrimas.

“Não. Não, não. Nada de disfarces pra você. Meu querido. Meu querido.”

Não me deixou perguntar por quê. Porque sim, porque preciso. Porque é.”

Mas isso tudo é um disfarce… Pra você é um disfarce. Eu que tragava o cigarro agora. Engolia fumaça. Engolia saliva.

“Você se disfarçou em mim, senhorita Jones…”

Só deu tempo de pegar seu telefone. A porta bateu em seguida.

 

She builds you up to just put you down, what a clown

 

Recebi uma mensagem no celular noite dessas, no bar.

“Watch out, the world’s behind you; there’s always someone around you who will call…”

Olhei pra trás instintivamente. Os cabelos eram pretos. Mas posso estar enganado.

Levantei pra dizer oi. Nunca sozinha. Em pé na varanda. Na mesa vazia mais ao lado, dois copos, duas bolsas.

“Você nunca foi muito do Lou.”

Fumava. Estava mais magra. Mas de novo posso estar enganado.

“Sozinha?”

“Não, não. Só fumando um cigarro. Alice foi ao banheiro.”

Alice?

Alice…

“Eu poderia rir de tudo isso, né?”

Ela riu. Poderia.

“Eu também te amo. Agora vai que te estão esperando.”

Não era um anticlímax. Era ela no que fazia de melhor.


‘Cause everybody knows the things she does to please – She’s a femme fatale

Published in: on 10 de novembro de 2010 at 22:36  Comments (6)  

Pois é

“Fumei teu antepenúltimo cigarro”, ele mandou em mensagem de texto.

Era com essa contagem regressiva que se comunicava com ela agora. Era um falta pouco angustiante, e ele cria que mais pra ele que pra ela. Ele podia estar errado, claro. Mas duvidava disso.

Tinham se reencontrado havia poucos dias. Não chovia. Era daqueles dias que fazia trinta e dois graus até tarde, do calor abafado das noites do Rio. Ela que tinha ligado. Por ele, ela ficava quieta. Deixava o resto como devia. Mas ela insistiu. Era sadomasoquista.

Ele cedeu, claro. Não podia. Não queria. Mas cedeu por autocomplacência, por autocomiseração. Sentia-se só como os diabos. Ela não. Ela estava arrumada e meiga. Olhos perfumados, boca que não parava de fumar e falar de problemas escusos com o namorado.

Era uma cínica. Era linda.

Foram prum boteco chique, desses que enfeitam o Rio pros turistas. Ela pedia Lapa, ele pedia comida e descanso. Vamos a dois ou a três?, ela sugeria docemente dissimulada, mas já sabia a resposta e não queria outra. Foram sós.

Assim que entrou no carro dele, começou a falar do namorado e de suas manias. Ele, assim, era capaz de desistir, ou de ter certeza do que ela queria – e não, isso não inclui você, bonitinho – ela escarnava. Mas ela escarnava sempre. Era ela. Escarnava até do que sentia. E tinha orgulho disso. Sempre foi assim.

Ela dizia que ele a conhecia mais do que ninguém (não dizia, mas ele sabia que sim, mais que o namorado aventureiro, porque ele já a tinha visto nua, ao contrário do namorado, mas não nua sem roupa, nua por dentro, nua sem carne, sem rosto, sem pudores, e o outro não podia, não queria, era cego ao andar dela, ao cheiro, aos olhos; ele a conhecia; o outro era só o amante, maldito necessário amante). E ele a conhecia mesmo mais do que ninguém. Ele escrevia pra ela. Ele escrevia pra ela.

Chegaram. Ela conhecia os garçons, ele nunca estivera lá. Ela pediu caldinho de feijão, ele dois chopes. E mais dois por conta. Conversaram sobre nada. Conversaram bobagens. Ele tentava redimir-se do que passaram. Ela não ligava. Acendia um cigarro atrás do outro e pedia mais dois. (Ele achou que ela tinha medo de ficar sozinha.)

Até que não percebeu e foi aonde ele queria. Ele perguntou e ela respondeu. Ela era fria. Mas não impassível. Já era, acabou. Eu tou em outra agora.

Acendeu outro cigarro. Ele pediu para que ela não o fumasse tão atentamente. (Não sei se pediu ou se escreveu um bilhete.) A verdade é que estavam anuviados entre a fumaça dela e a cabeça dele. Mas ele olhou para a fumaça do cigarro (saiu de seus devaneios) e percebeu o resto. Ela não o enganava.

Ela olhou para ele, viu que havia percebido. Desgraçado, ela disse (ou pensou), e deu um trago longo. Não era pra ficar sabendo. E para de me seduzir.

Ele assumia outra postura. Seria passível compará-lo ao leão na savana, a buscar a presa, ou ao caçador que vê o veado na relva, mas ele não era dado a metáforas desse tipo.

Ela dizia que gostava, mas não era a hora. Ele aproximou-se. Ela recuou. Recuou como quem dizia sim. E ele sentiu-se feliz.

Ele não precisava do sim dela. Um sim é inútil. Um sim é bocaprafora. Ele precisava ver que seu rosto se contraía, que seu corpo se desintegrava, que sua respiração ofegava, que sua voz ficava rouca. Ele precisava mais do que de um sim: ele precisava que ela concordasse. E ela o fez.

Aí ele se afastou. Pediram a conta, tarde por hoje. Ela olhou a carteira de cigarro e disse que sobraram três. Não posso jogar fora. E meu namorado me mata se chego com isso perto dele.

Ele pegou a carteira e ficou quieto. Levou-a em casa. Tentou beijá-la (já estava bêbado), mas ela resistiu. (Então tá.) Ele olhou pro lado e viu que não era preciso. Sorriu pra ela. Aquilo, sim, era pior. Ela olhou pros olhos dele, sentiu-se arrepiar, tremer, e sair do carro correndo. Não olhou pra trás. Não precisava. Ela era sua por inteira. Nua.

Ele deu o ultimato. Três cigarros era todo o tempo que ela tinha. Daí pra frente, tudo o mais seria mistério.

Pra ela. Pra ele… ele teria revelações.

Sacou do celular: “Fumei teu antepenúltimo cigarro…”

Published in: on 27 de fevereiro de 2009 at 03:55  Comments (5)  

Redenção

Os três bilhetes que escreveu pareciam lhe custar todos os esforços. Usava da matéria-vida que tanto admirava (pensava demais, amava demais, falava demais – parecia adolescente) para criá-los espontaneamente. Não relia, porque não era o caso de perceber o que escrevia. Era só fruição pra manhã que despontava…

O primeiro era sentimental. De uma bobagem dessas que a gente escreve quando pequeno. Falava de amor e outras bobagens.

“Minha Pequena,

se é assim (Pequena), é porque grande não havia de ser. Porque grande é exagero e não cabe no papel – o que me tornaria inútil, quase ridículo por escrever coisas que não cabem em seus lugares. É por isso que cabemos no todo aqui (o todo é o lugar mais belo). Cabemos nesse guardanapo sujismundo e rabiscado.  Porque cabemos em qualquer lugar. Somos alquimias absolutas – yin e yang, bem e mal, verdade e consequência, todo esse misticismo e essa conversa-mole de bar à meia-noite (noite escura e turva, de um dia seguinte menos embaçado).

(O espaço é curto.)

E se não digo mais, é porque não preciso. Espero que as maçãs estejam boas e o café fresco. Deixei um pedaço do bolo de ontem pra você. Só preciso de um cigarro – já volto (espero que acorde bem disposta e enquanto não volto, porque assim não me dá o trabalho de fingir que não escrevi nada enquanto você descobre o todo que está dentro dessa delicada cesta de pães).”

Releu o recado. Chorou. Mas havia um outro a ser escrito: o segundo era áspero e rápido. A caneta percorria o papel apressada. Não fazia as voltas do primeiro, nem tampouco suportava sua poesia. Era uma desconversa que não precisava ser escrita, mas que ele o fez assim mesmo, porque tinha tempo, porque não queria o desclaro. Era um dia bonito, enfim.

“Vizinho,

não roubei seu jornal. Aliás, também não o fiz perder seus bons amigos, não arranhei seu Opala 79, não diluí seu puro malte em água.

Porque não me importo. Não quero a sua vida.

Minha mulher sempre fora linda, tenho um cachorro de quem até gosto e ganho algum pro bar da frente. Você tem filhos – lindos, crescidos, dos tipos que devem ter dado trabalho –, uma boa aposentadoria e algum economizado. Temos boas histórias – as que queremos, as que construímos.

Ainda assim, se quiser, poderíamos disputar nossos infortúnios com uma garrafa do lado, que seria mais produtivo. Meu apartamento está aberto. Apareça quando quiser, não precisa de hora ou momento. Estarei sempre por aqui (mesmo agora) e não me importarei em vê-lo.

(Mas, por favor, não reclame mais no síndico sobre a música alta, de quem quer que seja. Esteja convidado.)”

A terceira já era mais longa e complicada. Deixava ao porteiro instruções sobre como proceder com o apartamento. Deixava separada a ração do cachorro e um cd para o vizinho da frente (tinha boas músicas).

Voltou a pensar nela. Teve certeza de que, com o Opala, fora um acidente infeliz. Chorou a última vez. Abriu a janela do vigésimo-segundo e deixou a brisa passear por todo o corpo enquanto descia.

(Perdê-la tinha-lhe sido demais.)

Published in: on 28 de janeiro de 2009 at 02:02  Comments (1)  

Hello, stranger

Ela jurou por Deus que era tudo o que queria ouvir. Surda, a pobre, aos anseios do amor. Cega a tudo o que lembrasse flores, bombons ou presentes pequenos de dia dos namorados. Queria mais que o amor bruto dos homens brutos. Sabia-se uma miserável qualquer numa cidade incandescente (luzes que, pela orla, enfeitavam-lhe a cabeça – uma aura, diria ela, atordoada (coitada!), uma aura de amor branco que me invade pela mente).

(Não acreditava mesmo nisso.)

Mas queria que alguém lhe surgisse no meio de um cruzamento e a chamasse para dançar – a noite está quente, o que acha? Queria ao som do mar horas de amor infinito. Renegava, entretanto, qualquer outra proposta, porque todas lhe pareciam pequenas, desajeitadas. Para ela, só cartas secretas pelo correio. Para ela, trechos de poesias fragmentados em pedaços de papel (servia guardanapo), com todo o significado que só um segredo traria. Para ela, o impossível. Menos era pouco.

Viu o homem que cruzava a rua em sua direção. Apaixonou-se no primeiro instante, coisa de contos de fadas. Ele também (ela descobriu). Estavam atônitos, não repararam o sinal verde. Sua ação, autômata, era a de atravessar a rua despreocupados. Buscavam-se um ao outro, souberam-se certos ali.

Um carro não os atropelou. Vinha devagar, a tempo de uma freada brusca. Não morreram, e pouco se assustaram. Olhavam-se meio embaraçados. Continuaram cruzando a faixa de pedestres sob xingamentos mortais do motorista. Não se revelaram um ao outro. Mantiveram o mistério e noites (eróticas) de perturbação.

Ela pensava nele sempre. Tinha que vê-lo, porque ele era o impossível. Era ele quem ela buscava. Sentia-se tão absoluta e completamente feliz que chegava a negar Kant ao afirmar que a felicidade, afinal, existia. Estava ali a felicidade. No impossível dos dois, numa troca rápida de olhares. Era nele que ela se realizaria, e foi nele que ela se realizou todas as outras noites.

Até que se reencontraram.

Ela atravessava no mesmo cruzamento, na mesma hora (trabalhava perto, saía cedo). Duas semanas depois. Ele ali. Parecia tê-la esperado um bocado (fazia calor no Rio, estava muito suado), ou talvez fosse ansiedade. Ela o viu, assustada. Ele sorriu.

Enquanto ele atravessava (ela ali, parada, não movia um músculo, olhava para a mão do sujeito), sentiu-se subitamente estranho. Carregava flores para as quais ela olhava sem piscar. Percebeu o ridículo da situação: ele não a conhecia. Ensaiou entregar as flores, mas ela era um retrato de decepção. Ele olhou para o lado, para um velhinho (vejam só: o velho estava triste), que recebeu-as com um certo estranhamento e um tanto de carinho (ficou feliz e pensou que o mundo talvez não estivesse tão perdido, afinal; morreu aquela noite).

Flores?, e isto foi o que ela pensou: era tudo o que ele que lhe oferecia, depois de semanas de êxtase. Flores.

Não foram atropelados aquele dia, como no primeiro. E ela amaldiçoou o mundo por isso.

(Ele? Quem se importa?)

Published in: on 23 de janeiro de 2009 at 02:24  Comments (2)  

Noite-cinza

Acendi o cigarro. Boas narrativas começavam assim. Acendi o cigarro e busquei um papel, não havia, sentei num banco, o mais próximo, e vasculhei a mochila mais fundo, passei a noite toda procurando quem me ouvisse, pensei, enquanto isso, gostava de ouvir o barulho da nicotina estalando quando queimava, traguei o cigarro de novo e de novo. E decidi falar sobre todo o amor do mundo, enquanto rabiscava o novo-velho livro do Safran Foer, por falta de papel nenhum.

– Tem algum trocado pra me ajudar, tio?

Não tinha, claro. E aí percebi que falar sobre o amor torna-se inútil. Não existe o amor. Nem esperança. São inúteis velhas canções de amor e esperança. Ruins demais, antiquadas, não servem. Não sopram vida. Baforadas e baforadas afoitas no cigarro. Grafite rasgando o novo-velho do Jonathan.

(Se eu não tenho pena de rabiscar o livro? Não. Não posso.)

Fico tonto com tanta fumaça, Eu preciso pagar as contas, Solto baforadas e penso na minha casa, Eu sou a minha casa. Paro, olho em volta. Atrás a nova luz do MAC, a praia, o Forte. À frente, a velha igrejinha. Um par de balanços livres. Cinzas no lvro.

Atrás, boas lembranças.

À frente, o mistério. E uma lua minguante.

 

 

Tossidas rápidas. Há necessidade de tornar limpos os pulmões; de discutir o complemento e o adjunto; de repensar prioridades.

 

 

Acaba o cigarro, mas a fumaça densa ainda paira em volta, absorta no ar fino. E no pulmão. A fumaça é o que fica do cigarro.

Apago. A. Guimba. Com ela. Apago. O. Que. Não. Me. Resta. Subscrevo. Passado e Futuro.

E o que resta?

 

 

Livro rabiscado. Lápis menor. Grandes construções do homem. Carros que passam. O que não restava antes. Lua que, à míngua, se esconde numa fria nuvem fina, e ganha aura surreal – e eu diria liricamente que a nuvem é a fumaça do cigarro, de tão pouco densa, tão densa ela era no cigarro, tão frágil a espalhar-se acima.

– Moço? Agora tem uns centavos? – e ele voltava com os chicletes amassados na caixa sobremorta, eu sobrevivo, ele sobrevivo.

Continuava sem trocado. Merda de vida.

 

 

Preciso mesmo é de um maço inteiro pra tragar as dores do mundo e expelir numa grande fumaça. Preciso de um táxi.

– Para onde?

– Para o grande todo amor do mundo.

Ele dá de ombros e parte sem rumo. Me oferece um cigarro e eu nego.

– Preciso de um maço inteiro pra tragar as dores do mundo…

– …e expelir numa grande fumaça, eu sei.

Olhei pra ele com espanto. E eu disse que queria ser encontrado logo.

– Eu sei, meu querido; meu filho, eu sei.

 

Published in: on 23 de janeiro de 2009 at 01:35  Deixe um comentário