– Que mané seriedade o quê!
Estava sério. Olhava firme para o outro.
– Que mané… esse negócio de seriedade é pra quem trabalha. Não, quer dizer, eu trabalho, sou sério no trabalho. Mas só no trabalho. Nesse negócio de vida não tem disso de ser sério, não.
Eu mesmo queria a continuidade da conversa que entreouvia, e perguntaria por que ele achava que a vida era um negócio se não soubesse que não era meu aquele solilóquio no meio do ônibus. Segui adiante, curioso, e ouvi o vagabundo avidamente. Vagabundo era modo de dizer. Sua roupa suja, sua filosofia de meia-pataca, seu bafo de botequim me sedimentaram nesse estereótipo fascinante. Ele investia contra o outro como se o atacasse, corpo pra frente, boca aberta, dedo em riste – era mil homens, não um, impunha respeito. O outro era só um senhor de mais de meia-idade, olhos embaçados, fixos no trocador que dormia.
Foi esse interlocutor desinteressado, porém, que tratou de dar asas ao vagabundo, que continuava acho que insólito, mas decidido, na sua retórica.
– Olha só, veja meu filho. Meu filho tentou ser sério a vida toda e o que aconteceu? Morreu. Acho que deu câncer, sei lá. É isso. Tentar ser sério é câncer. Embaralha a cabeça e o fígado. Eu não trabalho desde que meu filho morreu. Não deu pra aguentar. A mulher começou a reclamar que isso que aquilo, que ela só quem botava comida dentro de casa. Mas eu botava a minha vida dentro de casa. Sabe como é? Eu botava minha vida. Eu botava minha vi…
Recuperava o fôlego e os perdigotos perdidos. Parecia emocionado. Ou talvez só estivesse a pensar no próximo passo da história, no onde queria chegar. Porque àquela altura, só parecia dar voltas absurdas.
– Porque o senhor vê, seu… seu…
– Alberto.
– Pois é, eu ia dizer que não importa o seu nome. Quer dizer, o SEU nome não importa. E daí que é seu Alberto? Você é uma pessoa, seu Alberto. Uma pessoa maravilhosa. Não tem cristo que mude isso aí. Agora, se for se levar a sério demais, aí já era. Já era porque entra em religião, entra no trabalho, entra na terapia. O senhor vê esse negócio de terapia. É um câncer. A pessoa quer se conhecer, mas só conhece o que é sério. Isso não importa. Acaba com a sua vida rápido.
Seu Alberto não parecia fazer terapia. E se interessava menos ainda agora que o monólogo parecia ficar desconexo. O vagabundo se sentou melhor, ajeitou as costas e pareceu querer falar. Mas parou. Olhou pra paisagem.
– Isso aqui é bonito demais… Depois que perdi todo mundo foi que fez sentido. Depois de tudo foi que fez sentido.
Deixou escapar duas lágrimas, uma de cada olho. Não fez mais nada. Àquela altura, todo o ônibus voltava ao silêncio de passageiros ocupados em ensimesmar-se. Ele não falara pra ninguém. Seu Alberto não entendera que ele era ele: continuava a iludir-se de olhos abertos, olhando pro trocador que dormia a sono solto. Seu Alberto só se entendia como seus problemas. Seu Alberto era um homem de meia-idade que era seus problemas. Seu Alberto não existia.
O vagabundo então levantou-se: era o ponto. Estendeu a mão a seu Alberto, que, na dúvida, depois de hesitar, retribuiu o aperto. O vagabundo agradeceu, aquecido. Voltou-se a olhar para a porta de trás, por onde sairia. Enquanto caminhava, perambulando, resolveu arriscar mais uma vez, para, creio, não dar o dia por perdido.
– Aqui é um homem morto que anda. AQUI É UM HOMEM MORTO QUE ANDA, PORRA. Um homem que não consegue mais que alguns olhares de louco ou não se importa ou está morto. Eu me importo. Mas não me culpo. Então devo estar morto. Sei lá. Mas vocês vão ter a sua vez. Vocês vão ter a sua vez. Eu não sou herói, não. Eu sou um homem. Um homem morto que anda.
Saiu. Os passageiros deram graças a Deus. Seu Alberto olhou para trás, para mim, e rodopiou o dedo indicador ao lado da têmpora. Tinha a certeza de que lhe aparecia cada louco… Voltou-se para frente, para o trocador, e desistiu de ser homem.