Sassarico

“Eu sou muito fogoso.”

Muitos risos. As duas senhorinhas riam ardilosas, entreolhando-se, cúmplices, na fila do mercado ainda aberto no dia das mães.

“Meu marido já não é homem há algum tempo…” – saudosa e em ato falho. – “Fogoso! Eu quis dizer fogoso…”

“É porque sou alagoano.”, seguiu ele. “Meu pai deus o tenha foi amigo de Lampião e dizem que chegou a ter lugar no céu marcado pelo próprio Padim Ciço. E isso porque nem ia à igreja.”

As duas riram ainda mais alto. Uma chegou a ser deselegantemente histérica. Só não se sabia se de nervoso ou desejo.

“Eu era conhecido como o vulcão de Alagoas.”

“Ah, graç’adeus no Brasil não tem vulcão.”

“Tem sim, em Minas.”

“Ah, não conta, tô falando no Brasil.”

O velho era impassível e indiferente; interessava-lhe sua história.

“Eu tive quatro mulheres. Quatro.”

“Cruzes! E por que separou tanto?”

“Não separei; enviuvei.”

Tristeza e silêncio respeitoso.

“Nossa, as quatro vezes?” Cada uma buscou um ombro dele, ambas acolhedoras e carinhosas.

“É. As quatro. Nenhuma delas de morte morrida.”

Afastaram-se.

“Mas nenhuma foi culpa minha. Só a terceira. Matei mesmo de prazer.”

A atendente infeliz (só podia ser infeliz) cortou o clima: PRÓÓÓXIMO.

A outra, que ficou, segurou-lhe o braço e pediu:

“Me fala de novo. Ela morreu de que mesmo?”

“De p-r-a-z-e-r.”

Um arrepio esquecido há anos cruzou-lhe a espinha. A menina sorriu encabulada. Era um galanteador.

 

Published in: on 12 de maio de 2013 at 22:39  Deixe um comentário  

Vida fácil

(“Vem depois esse silêncio/Como o som de um paraíso infernal/No gozo que vem com um grito de dor/Copacabana sabe até falar de amor” – Cabaret / Copacabana Full Time)

Faz umas duas semanas que estive em Copacabana.

Deixei uma amiga em casa. Entrei com ela num prédio qualquer da Princesa Isabel, número qualquer, apartamento qualquer um. Nos corredores vazios, montes de tapetes pendurados nas portas dos apartamentos cheios. Tudo lotado. Um cheiro acre de perfume barato e colônia de alfazema forte coloriam o ambiente cinza paredes cinzas portas cinzas seres monocromáticos da fauna de Copacabana.

Aí peguei o elevador para descer. Apertei o botão e fiquei esperando esperando esp…

Aparece uma mulher de botas altas pretas, saia muito justa jeans, casaco desbotado bem aberto sobreposto à camisa carmim-vivo. Boca vermelha, pele branca. Cabelos loiros fakes. Tons fakes. Vida real.

Saiu atabalhoada, me atropelando timidamente na passagem, aqui não é o térreo? O ascensorista-porteiro, um senhor que aparentava pouco menos que um egípcio cleopátrico (num neologismo que só Copacabana permite), ria com dentes pouco firmes, e dizia não, a senhora desceu no quarto andar. Dei licença e a mulher voltou sorrindo para dentro do elevador. O velho também ria. Ri, sem saída.

Enquanto o elevador descia, resolveu aquela mulher de lábios carmim me perguntar sobre a noite. Tão cedo… Pra onde vai?, numa conversa mole mole. Vou embora. Tô indo pra casa. Não! Mas ainda são o quê? que horas são, seu Paulo? três horas ainda? E o gatinho já vai pra casa?…

É, trabalho cedo amanhã. Não, por que não fica mais um pouco?

“Ficar aonde?” Cabeça atordoada, cansada, rindo da mulher que ainda àquela hora oferecia companhia.

Chegou o andar e ela resolveu tocar meu ombro. Vai pra onde?

Meu ônibus ficava na rua do outro lado da calçada. Ah, mas eu vou pra direita, insistiu, numa numa quase-súplica angustiada. Além do mais, pra você atravessar, tem que vir comigo até a esquina.

Eu sabia que poderia ter virado à esquerda, e ter atravessado pelo outro lado, mas resolvi acompanhá-la.

Não sabia o que dizer. Estava trancado, tímido, mas ela estava disposta a propor. Propôs que eu a acompanhasse até o outro lado, que a noite ainda era nova. Contou que estava cansada, mas que queria finalmente descansar. Disse que estava a fim de sair dali, muito rápido, como se o “até a esquina” fosse um período entre o nada e o fim de sua vida. E contou que não cobrava muito.

Não ouvi o quanto ela cobrava. Chegamos à esquina e dei um tchau trancado, tímido, sem graça. Ela me olhou com pena. Por ela. Estou ficando velha e sem dinheiro. Agradeceu a companhia, atravessou a Nossa Senhora correndo de um carro que vinha acelerado. Não olhou pra trás.

Não olhou e me deixou pensando no quanto as noites frias de Copacabana podem ser solitárias e tristes muitas vezes.

Published in: on 28 de junho de 2009 at 14:37  Comments (4)  

Da série “Esquinas” I

– Que mané seriedade o quê!

Estava sério. Olhava firme para o outro.

– Que mané… esse negócio de seriedade é pra quem trabalha. Não, quer dizer, eu trabalho, sou sério no trabalho. Mas só no trabalho. Nesse negócio de vida não tem disso de ser sério, não.

Eu mesmo queria a continuidade da conversa que entreouvia, e perguntaria por que ele achava que a vida era um negócio se não soubesse que não era meu aquele solilóquio no meio do ônibus. Segui adiante, curioso, e ouvi o vagabundo avidamente. Vagabundo era modo de dizer. Sua roupa suja, sua filosofia de meia-pataca, seu bafo de botequim me sedimentaram nesse estereótipo fascinante. Ele investia contra o outro como se o atacasse, corpo pra frente, boca aberta, dedo em riste – era mil homens, não um, impunha respeito. O outro era só um senhor de mais de meia-idade, olhos embaçados, fixos no trocador que dormia.

Foi esse interlocutor desinteressado, porém, que tratou de dar asas ao vagabundo, que continuava acho que insólito, mas decidido, na sua retórica.

– Olha só, veja meu filho. Meu filho tentou ser sério a vida toda e o que aconteceu? Morreu. Acho que deu câncer, sei lá. É isso. Tentar ser sério é câncer. Embaralha a cabeça e o fígado. Eu não trabalho desde que meu filho morreu. Não deu pra aguentar. A mulher começou a reclamar que isso que aquilo, que ela só quem botava comida dentro de casa. Mas eu botava a minha vida dentro de casa. Sabe como é? Eu botava minha vida. Eu botava minha vi…

Recuperava o fôlego e os perdigotos perdidos. Parecia emocionado. Ou talvez só estivesse a pensar no próximo passo da história, no onde queria chegar. Porque àquela altura, só parecia dar voltas absurdas.

– Porque o senhor vê, seu… seu…

– Alberto.

– Pois é, eu ia dizer que não importa o seu nome. Quer dizer, o SEU nome não importa. E daí que é seu Alberto? Você é uma pessoa, seu Alberto. Uma pessoa maravilhosa. Não tem cristo que mude isso aí. Agora, se for se levar a sério demais, aí já era. Já era porque entra em religião, entra no trabalho, entra na terapia. O senhor vê esse negócio de terapia. É um câncer. A pessoa quer se conhecer, mas só conhece o que é sério. Isso não importa. Acaba com a sua vida rápido.

Seu Alberto não parecia fazer terapia. E se interessava menos ainda agora que o monólogo parecia ficar desconexo. O vagabundo se sentou melhor, ajeitou as costas e pareceu querer falar. Mas parou. Olhou pra paisagem.

– Isso aqui é bonito demais… Depois que perdi todo mundo foi que fez sentido. Depois de tudo foi que fez sentido.

Deixou escapar duas lágrimas, uma de cada olho. Não fez mais nada. Àquela altura, todo o ônibus voltava ao silêncio de passageiros ocupados em ensimesmar-se. Ele não falara pra ninguém. Seu Alberto não entendera que ele era ele: continuava a iludir-se de olhos abertos, olhando pro trocador que dormia a sono solto. Seu Alberto só se entendia como seus problemas. Seu Alberto era um homem de meia-idade que era seus problemas. Seu Alberto não existia.

O vagabundo então levantou-se: era o ponto. Estendeu a mão a seu Alberto, que, na dúvida, depois de hesitar, retribuiu o aperto. O vagabundo agradeceu, aquecido. Voltou-se a olhar para a porta de trás, por onde sairia. Enquanto caminhava, perambulando, resolveu arriscar mais uma vez, para, creio, não dar o dia por perdido.

– Aqui é um homem morto que anda. AQUI É UM HOMEM MORTO QUE ANDA, PORRA. Um homem que não consegue mais que alguns olhares de louco ou não se importa ou está morto. Eu me importo. Mas não me culpo. Então devo estar morto. Sei lá. Mas vocês vão ter a sua vez. Vocês vão ter a sua vez. Eu não sou herói, não. Eu sou um homem. Um homem morto que anda.

Saiu. Os passageiros deram graças a Deus. Seu Alberto olhou para trás, para mim, e rodopiou o dedo indicador ao lado da têmpora. Tinha a certeza de que lhe aparecia cada louco… Voltou-se para frente, para o trocador, e desistiu de ser homem.

Published in: on 21 de janeiro de 2009 at 23:11  Comments (3)