As mulheres que já amei pra sempre IV – A que tinha os sapatos mais bonitos

A história começa ridícula e termina, se não trágica ou sem um fim propriamente dito, final, termina de uma forma que leitores-que-gostam-dos-felizes podem parar de ler por aqui. Não é incomum, e Marc Webb já a contara pouco antes de eu deitar o dedo na caneta – this is a story of boy meets girl etc – e é plágio de tantas outras que sinto vergonha. Não da história; mas de repetir o repetido pros cansados de ler sempre as mesmas linhas desses romeus e julietas mal orquestrados pelos corações de homens mal escritos. De ritmo irregular e malcriado, levo pela memória para tentar fazer com que as palavras tropecem do peito pra fora. Se faço o certo e abro o verbo e racionalizo o que conto, é porque tento dar às palavras do coração, que é mau escritor, uma forma que só o cérebro pode entender; perturbo o sono dos músculos cardíacos e faço ventrículos terem pesadelos apressados. Mas preciso correr o risco de ser entendido por aqueles que não deveriam ler minha história – ou qualquer outra – (os insensatos, os racionalistas, os que têm a cabeça no lugar certo. Leitores-espírito-de-porco. Que traem o peito e a alma.) para fazer sentido àqueles que só querem isto: vim, vi, vivi. Pronto. Quem precisa de fatos?

Ela usava sapatos Schutz. O que obviamente para mim não fazia a menor diferença, mas para ela era tudo. ‘Um dia você ainda me escreve sobre os sapatos Schutz laranja de salto altíssimo que usei, não escreve?’ Ela me conhecia. Claro que sim.

Aquela noite em que ela usava tais sapatos não era demais. Era seu aniversário, sim, mas não um redondo ou especial ou importante. Nem de angústia era noite, nem de tensão, romance. Gola de camisa vermelha arrumada para mim. Saia comprida azul e camisa colada ao corpo para ela (ela ainda sabia que eu gostava dela de saia?). Blazer, formal, blasé. Não era casual o encontro. Mas não dizia muito.

Mesma intimidade, mesmo toque. Mesma boca que me sussurrava oi ao ouvido enquanto me abraçava. Mesmo perfume. Mesmos amigos. Ela não mudava.

Ainda assim, era uma mulher muito diferente.

Mas eu fazia as vezes quixotescas e falava sobre gigantes com moinhos de vento:

– Lembrei de você em Nova York. Nova York é a sua cara. Vários sapatos desse estilo.

E o que se passava em minha cabeça era que dizia sinto sua falta mais que tudo. (- Diga bom-dia para a noite, que já quase é minha hora. Ou me abraça forte e não me deixa ir. Não há muito mais que esse momento em que meus pés querem criar raízes no seu apartamento. Braços, pescoço, barriga, todo meu corpo é extensão do seu castelo. Essa noite; uma dança ruim de uma música que desconheço, mas que você sabe de cor; duas ou três lembranças do que já fomos. Isso bastaria para mim – comida, água, desejo. Não sou um homem de ambições maiores.)

– É, eu também sabia que você ia gostar de Nova York.

(- Eu sei. Por isso que não. Porque eu preciso de homem de ambições grandiosas. Não de meninos com ridícula obsessão de amor.)

– Vou ali pegar um 18 anos. Quer Chandon?

– (risada) Você me conhece…

Conhecia e não conhecia já àquela altura. Ela era amalgamática simbiótica antitetânica – da biologia que desconheço, ela era razão e circunstância do cientista louco, a vacina que eu procurara por anos a fio de pesquisa alquimística, hiperbólica e proparoxítona. A cada vez que me aproximava de uma resposta que sanasse o maldito vírus, a cura inexorável do vírus com que eu mesmo me infectara para a experiência, ela, virótica, mutava; calçava outros sapatos – Louis Vuitton, Louboutin, Manolo Blahnik – e voilá, eis a mulher, mutatis mutandis, a essência e o essencial, biologicamente a mulher, monalisática, enigmática, síntese da minha dúvida de amá-la para sempre e de a nunca mais querer.

Jogou o cabelo para o lado com um meneio singular do pescoço. Acenei com um sorriso.

– Claro. Te conheço como ninguém.

Ela era o Mistério; dizia sempre mais de mim que dela mesma. Do que revelava, só seus sapatos Schutz de cor laranja altíssimos, salto agulha, eram os culpados pela minha covardia.

A noite decorreu sem mais demora. Os leitores, mal acostumados, já não tardam em me perguntar o que era, o que rolou. “Vocês se amam ainda? Vão ficar juntos? E aquela noite?”

Aquela noite é minha memória e não a divido. Sinto muito; há segredos que são mais bonitos quando em mistério. Mesmo para mim há uma tênue névoa que me embota a memória e impede objetividade: tudo é nuvem e tolice quando, em idílios, sofismamos. Não importam os fatos.

Para que não fiquem os curiosos a insatisfazer-se em torturas de imaginar o que foi, a pensar no pião que gira ao fim de um filme sem fim, sem final propriamente dito, respondo que sim, é o que o leitor paciente imagina: nós nos amamos ainda e para sempre. Não seremos desconhecidos nos mapas dos desejos do outro, nem estranhos, nem inconvenientes, nunca mais. Ela é meu detergente e minha mácula, doce e sal juntos como ovo frito com banana, a vontade de pra sempre e a finitude, sem oximoro: só o inadiável desejo de querer o que já foi, o que não será mais.

Ao final, porém, de tudo o que ela já me disse – e eu copio, por absoluta incapacidade de dizer de outro jeito –, resta o que já ouvi triste, quando ainda não entendia:

– É verdade. Eu te amo. Mas às vezes amor não basta. Você não vê?

Não via. Olhava para baixo. Ela estava descalça quando me atirou na cara o que me era cegueira branca. Foi quando ali, prostrado, criatura miserável, cresci. Virei homem feito. Entendi Fernando Pessoa e tudo.

E o que me era indiferente virou claro, o que me era estúpido, sagrado, o que me era vivo, narcoléptico; dormem em sono pesado o coração e a alma plúmbea.

Para que o leitor não tenha sono desconfortável, digo-lhe que é a vida. Que tudo bem, a gente aprende. E que, afinal, não poderia haver mais bonita história de amor.

Se sangra o peito, leitor, se lhe rangem os ossos, então é a conclusão que adio há quatro parágrafos – por absoluta incompreensão e plena certeza de que fim não há –: da entrega e da verdade, nascem as mais bonitas cicatrizes.

Cicatrizes laranja de salto altíssimo. O chique no úrtimo no brechó do coração.

 

Published in: on 19 de novembro de 2012 at 21:27  Comments (2)