A cena era boçal.
“A máquina de doces é minha amiga”, sussurrava, enquanto esperava o chocolate.
Pegara o último trem para Orly porque o voo sairia cedo. Ou era o que dizia. Na verdade, gastara o dinheiro da última noite com bebedeiras sensacionais, por que não?, e aportou no aeroporto de mala e cuia. Mas só mala e cuia. Sem um puto.
No balcão de informações, o francês falou-lhe em inglês que tudo bem, ele poderia passar a noite ali, desde que o bonitão se comportasse. Ele só falava espanhol, não entendeu porra nenhuma e resolveu sorrir sem graça para a piscadela marota do funcionário-viagra.
Não houve outras investidas, a despeito de curiosidades.
Vasculhou a mochila, mas só tinha o Hemingway, que roubara na livraria em Paris (“pra não perder o costume”). Também não lia francês. “Merde!” Entediado, partiu a demarcar o território aeroportuário.
Entrou na administração, vazia já àquela hora, como o resto, mas as portas internas estavam trancadas. Lá dentro, pela porta de vidro, viu só a tia da limpeza. Aliás, a tia da limpeza parecia-se com uma outra, essa tia mesmo, portuguesa, gorda e com bigodes latejantes. Ele prometeu a si mesmo não troçar da mulher. Não falava francês.
Correu ao banheiro. Ah, aquilo sim era respirar a liberté francesa. Todo o mármore, todo o espelho, todos os mictórios escritos Valadares eram dele. Sentiu-se indomável. Arrancou a roupa (mas arrancou mesmo, de rasgá-la em pedaços) para demonstrar poder.
Permitiu o delírio de Amsterdã chegar mais tarde começou a dançar uma dança esquisita repleta de gritos tribais. Alto. Deixando toda a barriga agitar-se livre, tirou a cueca (por fim, o que sobrara) e rodou-a por sobre a cabeça. “Liberdade! Liberdade!” Indisciplina pura, deixou-se balançar à vontade. This fire is outta control…
A tia da limpeza não entrou, apesar do bigode, mas chamou seu comparsa-da-vassoura para investigar os ruídos misteriosos do aeroporto vazio. O homem, de bigode menos farto que o da mulher, não se furtou o espanto. Mas quando o nu avançou descontrolado, fingindo demência – JE SUIS NAPOLEON BONAPARTE! –, saiu assustado gritando Jesus Maria e José, e disse para a mulher-barbada que era caso de internação.
Voltou a vestir a calça e fingiu que nem era com ele. Calçou as luvas, encapuzou-se, e saiu como novo do outro lado, diante dos bigodes assustados. “Cada louco por aí”, disse em português mesmo, e virou a esquina.
Os funcionários entreolharam-se, sacudiram-se, fizeram duas preces e saíram de fino.
Quando deu fome, achou doces. Ali estavam as maravilhas do mundo moderno, sim senhor. Quem liga para a diabete se se pode viver num mundo de máquinas chocolates? Como se ligasse o fuck up, sacou da carteira os últimos centavos para uma delícia de… qual o número dessa zica mesmo?
Cuidadosamente, aplicou o primeiro euro. Gostosura de som, moeda tilintando por toda a máquina, descendo até… mas que porra. Travou. Uma batida fraca, seguida de duas mais fortes e uma outra realmente potente mostraram-se ineficientes. “Vá lá, jogo uma segunda e a gravidade age pelo resto.” Gostosura de som, moeda tilint. Os clins tornaram-se clec e mais nada.
Gritou e sacudiu e balançou e o diabo, mas nem mais um clin que fosse.
Os bigodes gozavam a cada nova investida. Aquilo já era pessoal. Ele, por sua vez, não desistia. Malditos franceses que nem faziam máquinas direito.
A cena abre de um superclose a um plano geral. Revela um campo, ele, a máquina, e os dois soldados de bigodes estranhos.
“A máquina de doces é minha amiga.”
Não era. E ele era piromaníaco.
Difícil mesmo foi explicar isso tudo a Robespierre depois. O ano era 1795.
Boa trilha sonora.
Sou sua fã! =)
Como em todos os seus textos, consegui visualizar e vivenciar a cena direitinho, o que me fez rir tresloucadamente … Embora não saiba se esse era o objetivo .
Mas com certeza esse é o mais divertido de todos !